
O fotógrafo Sebastião Salgado está sempre em trânsito pela vida. Em sua base, a cidade de Paris, reside por não mais do que três meses do ano. No tempo restante, está metido em algum recôndito canto do planeta, fotografando o humano, as paisagens ou os animais. Ao longo dos anos, a África se tornou um destino privilegiado de suas numerosas expedições. Imagens registradas em 40 reportagens feitas durante 30 anos foram reunidas agora em um livro, lançado pela editora alemã Taschen. A obra mostra a força, a intensidade, a poesia e a singularidade da arte do fotógrafo no revelar as várias faces do continente africano. Entre um desembarque da Colômbia e um embarque para o Japão, Sebastião Salgado conversou na capital francesa com a Revista da Cultura sobre a África, mas também sobre os destinos do planeta, o Brasil, a política e seu trabalho como fotógrafo.
Por Fernando Eichenberg, de Paris
Você se lembra das sensações da primeira vez em que pisou na África, em 1971? A África era um enigma para mim, sempre tive vontade de conhecer. Quando estive lá pela primeira vez, estava chegando onde sempre sonhei ir. E cheguei em um momento muito interessante, as cidades não eram tão grandes e agressivas como o são hoje. Eram agradáveis. Lembro que ficamos no hotel Norfolk, em Nairóbi (Quênia). Um hotel no campo, tinha um parquezinho, bicho em volta. Hoje, o hotel está no meio da cidade. É o mesmo hotel, a cidade cresceu em volta dele, ficou algo monstruoso. Era tudo tão tranqüilo... Chegamos a Nairóbi em uma sexta-feira e na segunda-feira voamos para Kampala (Uganda), sobrevoando o lago Vitória. Chegamos a Ruanda, em Kigali, uma cidade pequenina em que se fazia tudo a pé – hoje é imensa. Ficamos umas três semanas por lá, circulando de carro, um Volkswagenzinho, e naquela época não havia um palmo de estrada asfaltada. Até hoje é minha referência, são as cores, a temperatura, quando estou voando para lá, sinto exatamente a mesma coisa que senti na primeira vez. Devo conhecer pelo menos uns 30 países do continente. Tive uma bela amostragem de todas as partes. Mas houve um momento em que jurei nunca mais pôr os pés na África. Quando foi isso? Foi nos anos 1974-1975, de violência extrema em Angola, a guerra... E com as barbáries que vi, disse: “Chega, não volto mais!”. E acabei voltando e voltando e voltando. Cheguei da África agora em outubro, estou indo novamente em janeiro, volto mais uma vez depois. É um lugar maravilhoso, de contradições brutais, de violências terríveis. Mas não é uma violência característica, mas sim da espécie humana. É a mesma do Brasil, das favelas do Rio, de gente assassinada nas cidades brasileiras. Tem também o que aconteceu na Bósnia, no Kosovo. Também a barbárie total que aconteceu aqui na Europa, há 60 anos. É uma característica da nossa espécie. Hoje está muito na moda falar da África, porque é o exemplo mais recente e perto, que acontece sempre. Ao mesmo tempo, é um continente maravilhoso, com paisagens sublimes, onde encontramos o ser humano que fomos há 5 mil anos. Como é a sensação de acompanhar de perto mais de 30 anos de história? É algo fabuloso poder conviver com tribos que ainda vivem com o essencial da vida, onde o importante é ter, da maneira mais fina, o seu instinto de sobrevivência. Você passa a ser um bicho-homem ligado ao seu planeta. Trabalhei todos esses anos por lá, pude participar da história recente, dos últimos 40 anos do continente. Estive presente como repórter fotográfico, podendo viajar na crista da onda da história africana e testemunhar a formação de países, a imigração, o trabalho, os animais, as paisagens, as grandes secas, o castigo e a prenda da natureza, o efeito da globalização, tudo isso são imagens que estão nesse livro, que para mim não trata só da história da África. Está muito correto o que o Mia Couto escreve no prefácio: você passa a ser não mais só o fotógrafo, mas a sofrer o efeito de tudo do que a África te impregnou. Foi algo muito rico para mim.
O escritor moçambicano Mia Couto escreveu que você visitou a África em tempos de cristal e em tempos de lágrima, testemunhou a consumação do trágico, mas também o eclodir da esperança. Você vê saída para a África? Há saída, sim. Moçambique é um exemplo. Foi o único caso de uma negociação de paz levada a cabo pela ONU que funcionou. O fluxo de investimento é forte, a modificação estrutural do país... Botsuana e Namíbia também estão indo bem. Mesmo a África do Sul. A violência de lá é a nossa e a da Colômbia. É a violência de países que se urbanizaram, que adquiriram em três ou quatro décadas uma estrutura parecida com as que consideramos modernas nos países da Europa. O Brasil passou de 80% de população rural há 40 anos para 85% de população urbana, o que a Europa levou 600 ou 800 anos para fazer. É claro que não podemos deixar o continente africano abandonado. Nos últimos séculos, o melhor da África foi para o Brasil e para a América do Norte. Pegamos os escravos, quem era mais forte, quem tinha capacidade de trabalho. Quem vem para a Europa hoje? São os que têm maior capacidade de iniciativa, que não conseguem fazer nada em seu próprio país, pois não há fluxo de investimento, só matéria-prima. Isso vai ter de parar. Foi o caso do Brasil. Há 30 anos, éramos meros fornecedores de matéria-prima e hoje temos empresas como a Vale do Rio Doce, a 16ª maior do mundo. Eu não poderia imaginar isso nos anos 1950. Nos anos 1960, quando vivi no interior, todos os caminhões que destruíram nossa Mata Atlântica vinham dos Estados Unidos. Quando iríamos imaginar que seríamos esses grandes exportadores de hoje? Estamos vendo a desmoralização de uma referência do planeta em termos monetários, que é o dólar. Quem diria? Temos o direito de ser otimistas nesse caso. Não que a violência vá acabar do dia para a noite, mas acho que é o momento de as coisas começarem a mudar. Está-se indo na boa direção. Da África para o planeta. O seu projeto Gênesis é uma forma de repensar o “de onde viemos, para onde vamos”. Você acredita na supremacia do atual discurso ecológico sobre o mundo consumista, imediatista e individualista? O discurso no planeta mudou radicalmente nos últimos dez anos. A ponto de um ex-candidato a presidente dos EUA ter sido prêmio Nobel a partir de um discurso inteiramente ecológico. Atualmente, as pessoas com possibilidades de se tornar presidente do país são as que têm uma preocupação com esse grito de alarme do aquecimento global, que é real. Hoje, chega-se à conclusão de que todo o gelo do Ártico, que deveria terminar nos próximos 60, 70 anos, vai acabar no máximo em 10, 12 anos. É um momento muito interessante, porque o perigo está aí e as coisas vão ter de mudar. Não há uma empresa nesta parte do planeta que não tenha como referência o discurso ecológico. Nesse ponto, estamos muito atrasados no Brasil. O discurso da agricultura que tem hoje o governo, com o qual tenho certa proximidade, é um discurso velho. O discurso da megaempresa agrícola, de grande exportador de matéria-prima... Quando se calcula a porcentagem que essa matéria-prima exportada tem na composição do PIB brasileiro, é algo muito pequeno. O discurso moderno da agricultura é o do desenvolvimento sustentável, da recuperação ambiental. Podemos reduzir a aceleração do efeito do aquecimento plantando árvores. E temos um espaço incrível para fazer isso no Brasil, para reequilibrar o fornecimento de água. Mas, ao lado desse discurso velho do governo brasileiro, existe uma preocupação nova. Há ONGs muito sérias e fortes, há um grupo de intelectuais, uma grande parte da população que está preocupada com isso, sim.



Você se sente brasileiro, um pouco francês, cidadão do mundo? Meu passaporte brasileiro foi retido, por volta de 1975, e depois entrei com um processo, junto com o Augusto Boal, para recuperá-lo. Tenho documentos franceses, mas me sinto brasileiro. Estou adaptado aqui e tenho filhos nascidos na França, mas sou brasileiro, o que para mim é um prazer e uma honra. Nessas viagens pelo mundo me coloco a partir de uma ótica muito mais brasileira do que francesa. Com o privilégio de ter viajado por mais de 120 países, de ter visto esse planeta de dentro, com tempo. Sou brasileiro com formação internacional. Como fotógrafo, sua maneira de enxergar, sua relação com a luz, é brasileira e sua formação é francesa? É interessante, porque, pelo lado técnico da fotografia, sou formado na França, mas, para os fotógrafos franceses, sou considerado um fotógrafo brasileiro, porque minha maneira de ver não é a daqui. É meio especial. Tudo o que aprendi em fotografia foi aqui, mas isso é uma variável até o momento em que passa a ser uma constante, pois o que você aprendeu está aprendido, e o importante na fotografia é o que você tem e traz dentro de você. É a sua visão de mundo, que no meu caso é muito brasileira.


Como você se imagina daqui a dez anos? Fotógrafos vão longe. É uma profissão em que você vive pra fora, tem válvula de escape o tempo todo. Estive no México há poucos anos, foi o aniversário de 100 anos do Álvarez Bravo. O Henri Cartier-Bresson morreu com 96 anos. Lembro que, quando trabalhava na agência Magnum, a Eve Arnold, que tinha mais de 85 anos na época, pegava a máquina, entrava no avião e ia para a Índia fotografar. Não vejo prazo para terminar a minha carreira. Fazer projetos de oito anos como o Gênesis já é mais complicado. Possivelmente este seja meu último longo projeto. A partir daí, vou viver como todo o mundo, o dia-a-dia. Você já se disse admirador de Guimarães Rosa e de Jorge Amado. O que está lendo agora? Acabei de ler A fazenda africanoa, da escritora dinamarquesa Karen Blixen. É fantástico ler um livro sobre a África escrito nos anos 1930. E reli agora O nome da rosa, do Umberto Eco. Estou sempre lendo. Meu grande companheiro de viagem é o livro, sempre consigo uma horinha para ler. Questionado se, até ali, a vida havia sido boa com ele, o filósofo Jean-Paul Sartre respondeu: “No todo, sim. Não tenho do que me queixar. Ela me deu o que eu queria e, ao mesmo tempo, me fez reconhecer que não era grande coisa. Mas o que se pode fazer?”. E encerrou com uma grande gargalhada. A vida foi boa com você? Não posso me queixar. A vida foi boa para mim. Sou uma das poucas pessoas que teve a oportunidade de ver o planeta a fundo, de conhecer diferentes culturas. E agora, com o projeto Gênesis, tenho a oportunidade de conhecer as coisas mais nobres, mais fantásticas e de mais difícil acesso – porque nas de fácil acesso todo o mundo já foi e destruiu. É uma surpresa a cada curva da vida. Não dá para você ser blasé, porque é um prazer grande cada nova descoberta. Como fotógrafo, assim, houve possivelmente uma profissão na Idade Média, que depois desapareceu, que foi a dos andarilhos, pessoas que iam de um lugar a outro, aprendiam, transmitiam, iam passando para a frente. Realmente, tenho uma profissão interessante. Fui um privilegiado na vida. ©
Esta Dica de entrevista foi do Luiz, ontem lá assembléia, onde ele nos levou um exemplar da Revista da Cultura.
Valeu Luiz,
Um Abraço,
Alessandro Souza
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